Dando
continuidade à série de postagens sobre “O amor limitado de Deus”, dessa vez
estaremos abordando a questão a partir do pensamento do grande filósofo medieval Agostinho de Hipona. O debate em torno
da questão conceitual do binômio “homem
e liberdade” é de vital importância para o esclarecimento desse assunto. Ouso
dizer que, não entendendo quem é o homem diante de Deus, não há como avançar
nem mais um centímetro na compreensão da Sotereologia Agostiniana/Reformada,
portanto, bíblica.
INTRODUÇÃO
Agostinho, ao
longo de sua vida, se envolveu em várias controvérsias, por conta de sua
aguçada veia apologética. Dentre elas, aquela que foi a mais importante, no que
diz respeito à questão da liberdade, foi
o embate travado com Pelágio, por volta de 411 a 412, em Cartago. Pelágio era
um monge Britânico, eunuco, natural da Irlanda, que se engajou em intenso
conflito contra Agostinho, numa questão que envolvia basicamente o problema do
livre-arbítrio e da liberdade.
A ANTROPOLOGIA PELAGIANA
Para Pelágio, o
homem continuava habilitado, mesmo depois da queda, a fazer o bem se assim
desejasse e que não se fazia necessário uma assistência especial da graça de
Deus para que o ser humano O obedecesse.
Ele acreditava
que o homem estava habilitado para atender a todos os chamados de Deus e quando
Ele o convoca a arrepender-se é porque o homem pode fazer isto, por ele só, sem
que seja necessário o auxílio da graça divina; caso contrário, Deus não o
haveria ordenado, pois não ordena nada que seja impossível.
As principais
reivindicações pelagianas estão diretamente relacionadas à sua antropologia, ao
seu conceito de homem, como afirma Sprol, fazendo a seguinte observação acerca
da antropologia de pelágio:
Pelágio, destituído
da ideia do todo orgânico da raça ou da natureza humana, via Adão meramente
como um indivíduo isolado; ele não deu a Adão nenhum lugar representativo, logo
seus atos não acarretavam consequências além de si mesmo. Em sua visão, o
pecado do primeiro homem consistiu de um único e isolado ato de desobediência
ao comando divino [...]. Esse ato de transgressão único e desculpável não gerou
consequências à alma e nem ao corpo de Adão, muito menos à sua posteridade,
onde todos se mantém ou caem por si mesmos (SPROL, 2001, p.35).
Fica claro no
pensamento pelagiano uma visão positiva acerca do homem e isso influencia todo
o restante da sua construção intelectual. Para ele a queda do homem não trouxe
para si uma repentina destruição, muito menos ainda para sua descendência, como
denuncia o próprio Agostinho:
O homem pelagiano
goza de perfeito equilíbrio moral. O pecado não atinge sua natureza, mas seu
mérito. Quando peca, torna-se culpável de sua má ação. Perdoado volta à sua
perfeição. Não é prisioneiro de uma inclinação mórbida para o mal (AGOSTINHO. A
graça, 1999. p.105).
A ANTROPOLOGIA AGOSTINIANA
Agostinho
discordava de Pelágio essencialmente quanto à sua antropologia, de tal forma
que as outras discórdias adviam dessa.
Diferentemente
de Pelágio, Agostinho entendia que a queda trouxe consequências extremante
severas para o primeiro homem; e não somente para ele mas também para toda sua
descendência. Ele não o via como um indivíduo isolado
mas, essencialmente, como o representante legal de toda a raça humana,
como afirma: “Deus, autor das
naturezas, não dos vícios, criou o homem reto; mas o homem, depravando-se, por
sua própria vontade, e justamente condenado, gerou seres desordenados e condenados
(De Civ. Dei, XI, 27).
Para
Agostinho, com a queda, em certo sentido, veio também uma
privação da liberdade, isto é, o homem que outrora não tendia nem para o bem
nem para o mal, depois da queda, adquiriu certa tendência para o mal,
passando a conviver com uma natureza pecaminosa que passa a seus herdeiros de
forma hereditária, ou seja, essa natureza passa a habitar no homem, coisa que
inicialmente não existia. A morte física vem também ao homem depois e só depois
da queda e como consequência dela.
Agostinho
afirma de forma bastante clara que o pecado corrompeu a natureza humana, criada
por Deus, sem vicio nenhum, e não somente seu mérito, como pensava Pelágio. Esse
ponto de seu pensamento é essencial para entendermos sua antropologia. Devemos
ficar atentos para seu pensamento de que o homem foi criado com uma natureza
boa, sem nenhuma propensão ao mal, ao pecado e que esta natureza foi, de fato,
modificada, acrescentada, depois da queda com uma mórbida tendência à
concupiscência, como afirma,
A natureza do homem
foi criada no princípio sem culpa e sem vício. Mas a atual natureza, com a qual
todos vêm ao mundo como descendentes de Adão, tem agora necessidade de médico
devido a não gozar de saúde. O somo Deus é o criador e autor de todos os bens
que ele possui em sua constituição: vida, sentidos e inteligência. O vício, no
entanto, que cobre de trevas e enfraquece os bens naturais, a ponto de
necessitar de iluminação e de cura, não foi perpetrado pelo seu criador, ao
qual não cabe culpa alguma. Sua fonte é o pecado original que foi cometido por
livre vontade do homem. Por isso, a natureza sujeita ao castigo atrai com
justiça a condenação (AGOSTINHO. A trindade, 1995, XIV, 15).
E ainda:
A alma não pode
conceder a si mesma a justiça que uma vez recebida não mais a possui. Recebeu-a
quando foi feita criatura humana e perdeu-a, em consequência do pecado (AGOSTINHO.
A graça, 1999. p.114).
Podemos
resumir o entendimento de agostinho acerca do homem em quatro fases distintas:
a) Capacidade para pecar, capacidade para não
pecar (posse peccare, posse non peccare);
b) Incapacidade
para não pecar (non posse non peccare);
c) Capacidade
para não pecar (posse non peccare);
d) Incapacidade
para pecar (non posse peccare).
O
primeiro estado corresponde ao estado do homem na inocência, antes da Queda; o
segundo estado do homem natural após a Queda; o terceiro estado do homem
regenerado; e o quarto do homem glorificado.
Homem Pré-Queda
|
Homem Pós-Queda
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Homem Renascido
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Homem Glorificado
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capaz de pecar
|
capaz de pecar
|
capaz de pecar
|
capaz de não pecar
|
capaz de não pecar
|
incapaz de não
pecar
|
capaz de não pecar
|
incapaz DE PECAR
|
A capacidade original do homem incluía tanto o poder para não pecar
como o poder para pecar ( posse non peccare et posse peccare ). No pecado
original de Adão, o homem perdeu o posse non peccare (o pode para não pecar) e
reteve o posse peccare (o poder para pecar) - o qual ele continua a exercer. Na
concretização da graça, o homem terá o posse peccare retirado e receberá o mais
alto de todos, o poder para não ser capaz de pecar, non posse peccare (AGOSTINHO.
Correction and Grace, XXXIII.
Aqui está a chave para o
entendimento da antropologia Agostiniana, que influencia sua visão de moralidade e da ética.
Como fica claro, Deus, em
sua essência bondosa, criou o homem bom e perfeito e lhe dotou da maior dádiva
de todas, só concedida ao homem: a liberdade, que é, em si, essencialmente boa.
De sorte que o homem, no estado pré-queda é absolutamente livre, não tendendo
nem mesmo para o bem, podendo escolher, sem nada que o sugestione, o bem e a
felicidade eterna. Contudo, com a possibilidade de escolher o mal, a desobediência.
Do contrário, onde estaria a liberdade?
Podendo ele escolher o bem,
resolve deliberadamente escolher o mal. Acaso haveria culpa em Deus por ter
concedido dádiva tamanha, tendo, inclusive, advertido o primeiro homem do
perigo e consequências da desobediência? Caindo o homem, trouxe sobre si e
sobre aqueles que representava legalmente, todos os males existentes,
tornando-se não somente vítima de si mesmo, mas também merecedor e único
causador de todos os males que lhe sobrevém, sendo sua culpa transmitida e
imputada a todos os seus descendentes, que já nascem pecadores e que, por sua
natureza amante do pecado, tem prazer no pecado. Segue-se, então, o plano
redentivo de Deus para resgatar alguns homens e trazê-los de volta à
felicidade, só que, dessa vez, no seu último estágio, sem a possibilidade de
cair novamente.
Proximo ponto: A CONSEQUÊNCIA LÓGICA DA
ANTROPOLOGIA AGOSTINIANA: A PREDESTINAÇÃO. Aguarde!