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segunda-feira, 21 de maio de 2012

A IGNORÂNCIA É FELICIDADE



A ignorância é Felicidade!  Frase aparentemente inocente e despretensiosa, mas que está cheia de significados e implicações filosóficas. Ela aparece no filme Matrix, numa importante discussão acerca da verdade. Parece supor alguém que conhece os dois lados da moeda: a ignorância e o conhecimento. Alguém que trilhou caminhos bem definidos para alcançar o alvo-conhecimento e, agora, olhando para trás, chega à conclusão que era mais feliz no tempo da ignorância. “Melhor tivesse ficado sem conhecer a verdade, na ignorância”, chega-se a afirmar.  De fato, conhecer, muitas vezes, é atormentador.

Paulo, Apóstolo de Jesus Cristo,  sentiu na pele o peso que o conhecimento trás ao homem. Diz ele: “eu não teria conhecido o pecado, senão por intermédio da lei; pois não teria eu conhecido a cobiça, se a lei não dissera: Não cobiçarás” (Romanos 7:7). 

Sabedor, agora, do que deve e do que não deve fazer, Paulo passa a viver o conflito existencial que somente aquele que “conhece” vive. A luta agora, depois de ter “conhecido”, é contra o mais difícil inimigo a ser enfrentado: sua própria natureza, que teima em fazer aquilo que a sua própria consciência, agora espiritual, lhe diz para não fazer: “Porque não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço” (Romanos 7:19). Resultado: tristeza, frustração, decepção, sentimento de impotência e insatisfação. Tudo isso descrito num profundo brado de lamento e melancolia por ter chegado ao “conhecimento” que chegou. Conclui Paulo: “Desventurado homem que sou! (Romanos 7:24).

Numa elucubração anacrônica, imaginemos Paulo assistindo Matrix. Será que ele concordaria com a célebre frase “Ignorância é felicidade”?

A.W.Pink comentando essa luta interior que o apóstolo Paulo travava com sua própria consciência-conhecedora, faz a seguinte afirmação:

O reconhecimento dessa guerra em seu íntimo e o fato de que se tornou cativo ao pecado levam o crente a exclamar: “Desventurado homem que sou!” Esse é um clamor produzido por uma profunda compreensão da habitação do pecado. É a confissão de alguém que reconhece não haver bem algum em seu homem natural. É o lamento melancólico de alguém que descobriu (grifo meu) algo a respeito da horrível profundeza de iniqüidade que existe em seu próprio coração. É o gemido de uma pessoa iluminada por Deus, uma pessoa que odeia a si mesma — ou seja, o homem natural — e anela por libertação (http://www.editorafiel.com.br/artigos_detalhes.php?id=84).

Eis o tormento causado pelo conhecimento, inclusive da Lei Moral de Deus. Acaso não teria sido mais vantajoso ter continuado na ignorância em relação à Lei?  Muito tarde para isso. Não dá mais para “não ter conhecido”. Uma vez iluminados pela luz da verdade, não conseguiríamos viver novamente na escuridão da ignorância; por mais difícil que seja conviver com o conhecimento. E se pudéssemos aconselhar o ignorante? Diríamos para continuar na sua ignorância para não se arrepender de ter conhecido? Estaríamos corretos?

O Filósofo Grego Platão, em sua Alegoria da Caverna, abordada a partir da Teoria do Conhecimento, ensina que a vida do ser humano pode ser divida em 3 etapas:

1º) A primeira etapa, a Agnosis, é a etapa da Ignorância, representada, em sua alegoria, por homens presos, desde a infância, no interior de uma caverna escura, olhando sombras refletidas na parede, enquanto entendem ser esta a única realidade/verdade existente, já que não conheciam outra. Segundo Platão, todos os seres humanos, sem exceção, já nascem  nessa etapa, na ignorância. A maior parte das pessoas jamais sairão dela. Nascerão, viverão e morrerão na ignorância.


2ª) A segunda etapa, o Doxa, é a etapa da desconfiança ou opinião, representada na alegoria, pelo prisioneiro que consegue se libertar e olhar, pela primeira vez em sua vida, em outra direção, para a entrada da caverna, quando percebe que existe algo além das sombras que entendia como a única verdade existente, porém, ainda não consegue discernir com clareza o que consegue ver no exterior da caverna, mas tem, agora, certeza de uma coisa: existe algo além das sombras que via. Segundo Platão, algumas pessoas transcendem à Agnose e conseguem chegar a essa etapa, mas não todas.

3ª) Finalmente, a terceira etapa, Episteme, é a etapa do “Conhecimento”. Quando o indivíduo que conseguiu se libertar de sua cadeia, imposta desde a infância, e, agora, sai definitivamente da caverna, ficando frente a frente com o real, com a verdade. Ele finalmente, “conhece” a verdade e entende perfeitamente que antes, quando na caverna, era um ignorante, vendo sombras e julgando ser a realidade. Segundo Platão, poucos chegam nessa etapa.


A imagem acima, em forma e significado piramidal, demonstra bem o número de pessoas em cada uma dessas etapas:

Ao se deparar com a Luz da verdade, do conhecimento, identificados na alegoria de Platão pela Luz do sol, o preso que consegue se libertar das cadeias, já começa a sentir os primeiros problemas causados pelo “conhecimento”:

1)  Seus olhos, agora desconfortáveis,  são ofuscados por conta dos longos anos vividos na escuridão da caverna;

2)  Sente a necessidade, incontrolável de voltar à caverna para tentar soltar seus companheiros de infortúnio, pois o conhecimento da verdade não lhe permite mais viver tranquilamente enquanto lembra-se de outras pessoas, seus companheiros, que ainda estão vivendo  na completa escuridão da ignorância, o que denota a inquietação e responsabilidade trazida pelo conhecimento;

3)  Sofre muita resistência dos seus antigos companheiros de prisão ao tentar abrir-lhe os olhos para que, também, assim como ele, conheçam a verdade. Afinal, é bem mais cômodo ficar na zona de conforto que sair em busca do conhecimento.

4)  Como insiste em levar o conhecimento adquirido adiante, aos outros, é, finalmente, morto por seus próprios companheiros. De fato, muitas vezes o conhecimento poderá ser responsável por traumas irremediáveis.

A decisão por querer conhecer  é algo de extrema responsabilidade e que trás um imenso peso ao ser humano. Chegar ao conhecimento, entretanto,  não é nada fácil. Por isso mesmo, muitas pessoas preferem continuar na comodidade e na inércia da ignorância. É preciso percorrer um longo e árduo caminho para chegar ao conhecimento.

O filme Show de Truman aborda de forma brilhante esse tema, completamente embasado na  Teoria do Conhecimento de Platão. Ou seja, alguém que vivia na completa escuridão da ignorância e depois resolve sair em busca da verdade, do conhecimento. Veja toda a dificuldade que essa atitude pode gerar, na cena final do filme, abaixo:


Apesar do tormento que o “conhecimento” pode trazer, ele é também fonte, talvez a única, de soluções inadiáveis. O conhecimento prévio de uma doença grave, por exemplo, ainda que traga dor e tristeza, pode ser fundamental para o início de um tratamento eficaz. Da mesma forma, o conhecimento do perigo que um filho está correndo, por mais desesperador que seja para seus pais, pode permitir que cheguem a tempo de salvá-lo do desastre eminente.  
  
Finalmente, o que a bíblia tem a nos dizer sobre esse tema? 

Qual a recomendação e opinião da Palavra de Deus a esse respeito? Devemos buscar o conhecimento ou, antes, pelo contrário, preferir a ignorância? Qual o melhor para nossa vida? O atormentador  peso do conhecimento ou a suposta leveza da ignorância?

Que muitos líderes religiosos preferem seus rebanhos na mais completa escuridão e ignorância, para poder assaltar-lhes os bolsos com maior tranqüilidade, é certo. Mas, e a Bíblia? O que nos diz? Vejamos alguns textos:         

Mateus 28:19-20: “19.Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo;  20.ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século”.

Algumas pessoas costumam dizer que não gostam de teologia. “Meu negócio é vida prática”, afirmam. No texto acima, um dos mais conhecidos, sempre que é citado, pontua-se a questão do “Ide” (v.19), da “evangelização”. Mas, não podemos esquecer que o mesmo imperativo para “evangelizar” é aplicado, com a mesma intensidade, para a necessidade do “ ensino  da palavra de Deus” (v.20). Em Mateus 22:29, Jesus levanta mais uma vez a questão da importância do aprofundamento no estudo das escrituras. Diz ele: “Errais, não conhecendo as Escrituras”. Em João 5:39, sobre esse assunto, mais uma vez Jesus incentiva o aprofundamento nas escrituras, diz ele: “Examinai as escrituras”.

Jesus, em João 8, fala de escravidão, sinônimo de ignorância, e de libertação, sinônimo de conhecimento:

8.36   Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres.

Qual o meio utilizado pelo Filho para promover essa libertação, inclusive da ignorância da falta de conhecimento de Deus e de seus preceitos?

8.32   e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará. (Conhecimento da Verdade)

E o que é a verdade?

Jesus, em João 17:17, explica: “ Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade”.

O próprio Paulo, mesmo sabedor do sofrimento e responsabilidade que o conhecimento trás, opta por ele e desconsidera a possibilidade de viver na ignorância. Muito embora, o conhecimento de Deus e dos seus preceitos também produzam prazer e descanso sem igual.

II Timóteo:

3.10 Tu, porém, tens seguido, de perto, o meu ensino, procedimento, propósito, fé, longanimidade, amor, perseverança, 3.14   Tu, porém, permanece naquilo que aprendeste e de que foste inteirado, sabendo de quem o aprendeste 3.15   e que, desde a infância, sabes as sagradas letras, que podem tornar-te sábio para a salvação pela fé em Cristo Jesus. 3.16   Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, 3.17   a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra.


Colossenses

1.10   a fim de viverdes de modo digno do Senhor, para o seu inteiro agrado, frutificando em toda boa obra e crescendo no pleno conhecimento de Deus;

Romanos

1.28   E, por haverem desprezado o conhecimento de Deus, o próprio Deus os entregou a uma disposição mental reprovável, para praticarem coisas inconvenientes,


Tito

1.1   Paulo, servo de Deus e apóstolo de Jesus Cristo, para promover a fé que é dos eleitos de Deus e o pleno conhecimento da verdade segundo a piedade.

Por fim, devemos entender que o conhecimento de Deus e de seus preceitos, descritos exclusivamente em sua Palavra, são verdadeiros luzeiros a iluminar nosso caminho, a dissipar por completo as trevas da ignorância.


A ignorância é Felicidade?

Depende do que entendemos por Felicidade. Depende do objetivo de nossas vidas. Se nosso objetivo é a glória de Deus, não podemos ficar alheios ao conhecimento Dele e de seus preceitos. Se há alguma possibilidade da ignorância trazer felicidade, prefiro, e devemos preferir, a dor do conhecimento à louca sensação de paz e tranqüilidade que a ignorância forja, fazendo tudo parecer real, enquanto sabemos: são apenas sombras.


Preferir sombras à verdade, tendo a possibilidade de conhecer a verdade, é um ato tão louco quanto pode ser.

Lâmpada para os meus pés é a tua palavra e, luz para os meus caminhos (Salmos 119.105).

sexta-feira, 4 de maio de 2012

GERAÇÃO DE DAVI - NOVO CLIP




O grupo Musical Geração de Davi lançou clip da música Coração Adorador, do seu novo CD. Inegavelmente grupos como o desses irmãos (do meu irmão Marcos Correia) têm revolucionado a música gospel e ajudado a melhorar sua qualidade técnica, com instrumentos top de linha e músicos de alta qualidade. Sem eles, a música gospel estaria fadada a continuar sendo produzida com equipamentos, instrumentos e músicos de quinta categoria no Brasil. Conheço outras músicas do grupo Geração de Davi, do primeiro CD, e posso testificar essa qualidade. Por outro lado, grupos como o Geração de Davi têm sido responsáveis pela inclusão de novos conceitos, como por exemplo, a chamada “ministração da música”, comum em 99,9% das igrejas, como forma de condução da igreja à adoração, bem como a utilização desse elemento lúdico - a música - para o doutrinamento da igreja. Gostaríamos de saber sua opinião sobre o assunto.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

A CONTRIBUIÇÃO DA FILOSOFIA BERGSONIANA PARA A QUESTÃO BIOÉTICA DO ABORTO EM FETOS ANENCÉFALOS E DA EUTANÁSIA - Parte IV - FINAL



CONCLUSÃO

A filosofia bergsoniana dá uma importante contribuição às graves e atuais questões da bioética. Muitas vozes têm se levantado contra o aborto – especialmente dos fetos com anencefalia -, bem como contra a eutanásia, mas nenhuma delas (nessa área específica do conhecimento) com a pujança da filosofia de Henri Bergson.

Em julho de 2007, a impressa do mundo inteiro noticiou a “surpresa” dos médicos pela “retomada de consciência” de um polonês que há dezenove anos estava no chamado estado vegetativo[i]. Essa é uma prova evidente de que a ausência de atividade cerebral – somente – não é prova definitiva para uma pessoa ser declarada morta, tendo em vista a possibilidade de reversão do quadro, ainda que remota, ainda que para a surpresa da ciência.

Por tudo isso, a desvinculação do binômio cérebro-consciência, sugerida por Bergson, precisa ser “urgentemente” reavaliada. A ciência não pode assumir (como tem feito) postura de detentora de todos os conhecimentos. A ciência – sozinha – não pode e não deve definir o que é vida e o que é morte. Quantos “fetos vivos” ainda terão que ser extirpados, por não serem definidos como “seres humanos” pela ciência? Quantas Terri Schiavo’s  ainda terão que morrer de inanição, porque a ciência (que deveria advogar em favor da vida) lastreou a retirada das sondas de alimentação? Quantas Eloás não perderão o direito, diferentemente do polonês, de aguardar um pouco mais a reversão de seu quadro?

Urge uma necessidade eminente de redescobrirmos a filosofia bergsoniana, para o bem e continuação da vida.

BIBLIOGRAFIA

BEAUPORT, Elained. A inteligência emocional: as três faces da mente. Trad. de Marly Winckler. Brasília: 1997. p

BERGSON. Henri. A consciência e a vida. Trad. de Franklin Leopoldo.  São Paulo: Abril Cultural, 1979d. p. 75. (Coleção os Pensadores).

______. A alma e o corpo. Trad. de Franklin Leopoldo.  São Paulo: Abril Cultural, 1979e. p. 75. (Coleção os Pensadores).

______. Cartas, conferências e outros escritos. Trad. de Franklin Leopoldo. São Paulo: Abril cultural, 1979i. 238 p. (Coleção Os Pensadores).

BERKOHOF, Louis. Teologia sistemática. Trad. de Odayr Olivetti. Campinas: Luz para o caminho, 1990. 791p

DELNERO, Henrique Schutzer. O sítio da mente: pensamento e vontade no cérebro humano. São Paulo: Collegium Cognitio, 1997

LUCKESI, Cipriano. Filosofia da educacao. 1. ed. Sao paulo: Cortez Editora e Livraria Ltda, 1994. 183 p. -- (colecao magisterio-2. grau. serie formacao do professor)

MACHADO. Ângelo. Neuroanatomia funcional. São Paulo: Atheneu, 2004. p

MORAES, Maria Cândida. Pensamento eco-sistêmico: educação, aprendizagem e cidadania no século XXI. Petrópolis: Vozes, 2004. p

TEIXEIRA, João de Fernandes. Filosofia e ciência cognitiva. Petrópolis: Vozes, 2004. p.

[i] http://oglobo.globo.com/mundo/mat/2007/06/02/296007334.asp: “Um polonês que permaneceu 19 anos em coma, depois de ter sido atropelado por um trem, surpreendeu os médicos ao retomar a consciência. De acordo com a imprensa polonesa, Jan Grzebski, hoje com 65 anos, ficou espantado com as mudanças na Polônia e em sua família durante o tempo em que permaneceu em coma. “Agora eu vejo pessoas nas ruas com telefones celulares e há tantas coisas boas nas lojas que eu fico tonto. Quando entrei em coma, havia apenas chá e vinagre nas lojas, a carne era racionada e havia imensas filas para abastecer os carros em toda parte”.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

A CONTRIBUIÇÃO DA FILOSOFIA BERGSONIANA PARA A QUESTÃO BIOÉTICA DO ABORTO EM FETOS ANENCÉFALOS E DA EUTANÁSIA - Parte III


O QUE É O HOMEM?

Finalmente, depois de desconstruir a idéia de uma consciência existente apenas como uma espécie de espelho do cérebro, Bergson se vê diante do mesmo antigo problema ontológico: O que é o ser “homem”? A essa questão responde de forma simples, nunca superficial: matéria e consciência.

O homem é, enquanto matéria, “submetido à necessidade, desprovido de memória [...] nada acrescentando ao que já havia no mundo” (BERGSON, 1979d, p.77). 

A matéria serve como uma espécie de aprisionamento do homem no presente, o que não devemos confundir com a teoria platônica, pois Bergson não vê o corpo como uma “prisão”, no sentido negativo utilizado por Platão. Para ele, isso é apenas uma constatação, sem a preocupação de juízos de valores, sem contar que a interação que há entre o corpo e o outro elemento constitutivo do homem, que não pré-existe, como afirma Platão, ao contrário: co-existe, se dá de forma natural e positiva, como ele mesmo afirma: “A matéria é necessidade, a consciência é liberdade; mas por mais que elas se oponham uma à outra, a vida encontra meio de reconciliá-las” (BERGSON, 1979d, p.75).

Esse confinamento no momento presente se dá devido à constituição do corpo, e Bergson faz questão de frisar isso para evidenciar ainda mais o outro contraponto ontológico – a alma.

Bergson, ao analisar o problema do tempo, defende certa primazia do presente, de forma que as outras modalidades de tempo parecem orbitar em torno dele. Esta primazia é ainda mais acentuada com relação ao corpo, como afirma: “o corpo é matéria, a matéria está no presente” (BERGSON, 1979d, p.84). E novamente, para clarificar ainda mais essa idéia, na forma de síntese, afirma ele que “o corpo que está confinado ao momento presente no tempo, e limitado ao lugar que ocupa no espaço, que se conduz como autônomo e reage mecanicamente às exigências exteriores” (BERGSON, 1979d, p.84).

Bergson teve sua formação lastreada sob os moldes do Positivismo, não ficando, contudo, preso aos seus ditames. Esse conhecimento científico, sobretudo das ciências biológicas, matemáticas e físicas, com uma boa ênfase em mecânica, foram experiências relevantes em sua vida, e o habilitaram ainda mais para aprofundar uma metafísica que conduzisse o homem aos fatos reais; a não retirar a verdade dos fatos, mas, antes, a experimentar a própria verdade no próprio fato. Isso já havia sido almejado por Spencer, mas, por não ter “os conhecimentos necessários de mecânica” e das outras ciências positivas, não logrou êxito em sua investida, deixando difícil missão para Bergson.

O fato é que, mesmo sendo um homem das ciências, Bergson não se conformava com a falta de fidelidade nas respostas oferecidas pelo Positivismo e pela própria metafísica tradicional, sobretudo quanto à questão do tempo.

Para ele, o homem não pode ser constituído apenas de moléculas e outros centros nervosos, ainda que sofisticadíssimos. Ao lado disso, existe um outro elemento, talvez nem mais nem menos importante que o primeiro, mas que não pode ser negado enquanto elemento igualmente constitutivo da essência do ser humano: a alma. Centro de toda imprevisão, possuindo caráter voluntário e antagônico à previsibilidade da matéria é, por isso mesmo, e não por não se deixar dominar e por não “caber” nas respostas pré-fabricadas das ciências positivas, negada, como percebe Bergson:

A verdade é que se pudéssemos, através do crânio, ver o que se passa no cérebro que trabalha, se dispuséssemos, para observar o interior do cérebro, de instrumentos capazes de aumentar milhões de vezes mais do que nossos melhores microscópios, se assistíssemos assim a dança das moléculas, átomos e elétrons, de que é feita a substância cerebral [...] saberíamos tão bem quanto à pretensa “alma” tudo o que ela pensa, sente e quer tudo o que ela acredita fazer livremente enquanto o faz mecanicamente [...] pois a pretensa alma, consciente apenas para abarcar uma pequena parte da dança inter-cerebral [...]. “A alma consciente”, é quando muito, um efeito que percebe efeitos (BERGSON, 1979e, p.75).

Além das características de imprevisibilidade, o que a torna também sempre criadora, pois, como suas atitudes não podem ser previstas, todas as suas realizações serão sempre novas, nunca antes existentes, essa alma possui também a capacidade de ultrapassar, de transcender, não sendo nenhum tipo de reflexo do material, do corpo, isto é, não pode ser encontrada em nenhum lugar do corpo, nem mesmo nos neurônios e teias cerebrais[i]. Isso equivale a dizer que a alma é outro elemento constitutivo do ser humano, dotado de distinção e características próprias, nunca fruto de emanação da matéria, do corpo.

A alma transcende, ultrapassa todos os limites do corpo a quem está intrinsecamente ligada, mas, ao mesmo tempo, separada por suas próprias distinções categóricas. A alma ultrapassa o corpo tanto no espaço como no tempo. No espaço, porque, diferentemente do nosso corpo, que está detido nos contornos da matéria que o limita, tem a capacidade de perceber, de ver o que está distante do nosso corpo, “podendo deslocar-se até às estrelas”; “viajar” a milhas e milhas de quilômetros, enquanto nosso corpo permanece inerte, segurando um bom livro.

Mas a alma também transcende o corpo no tempo. Nosso corpo, sendo matéria, está no presente, e ainda que traga em si os traços dos tempos passados, só o são assim, passados, por causa da alma, da consciência que assim os interpreta, como diz Bergson:

Se é verdade que o passado aí deixa seus traços, são traços de passados apenas para uma consciência que os percebe e interpreta o que percebe à luz do que ela recorda: a consciência, ela sim, retém o passado enrolando sobre si própria, na medida em que o tempo passa, e prepara com ele um futuro que ela contribuirá para criar (BERGSON, 1979d, p.83).

Bergson parece ter apreendido essa noção de alma, espírito, consciência, não somente através de seus métodos experimentais de um “empirista radical”, em contrapondo com o elemento corpóreo e material, mas, possivelmente, pode ter sofrido algum tipo de influência do pensamento judaico, uma vez que era de família judaica[ii]. Isso pode explicar porque se utiliza de sinônimos para representar a idéia de consciência, como, por exemplo, espírito, alma, eu. A utilização de sinônimos é muito comum na literatura judaica, além de considerar também a igualdade entre conceitos:

É costume entender que o homem é constituído de duas partes distintas, e de duas somente, a saber, alma e corpo. Várias palavras são empregadas no Velho Testamento para indicar o elemento inferior do homem ou parte dele, como: carne, pó, ossos, entranhas, rins e também expressões metafóricas como “casa de barro”. Há também diversas palavras que indicam o elemento superior, como: espírito, alma, coração e mente (BERKHOF, 1998, p. 193).

Vejamos como Bergson entende a alma:

Apreendemos algo que se estende muito mais longe que o corpo por todos os lados e que  cria atos ao se criar continuamente a si mesmo, é o “eu”, é a “alma”, é o “espírito” – o espírito sendo precisamente uma força que pode tirar de si mesmo mais do que contém, devolver mais do que recebe, dar mais do que possui. Eis o que cremos (BERGSON, 1979e. p.84.)

Parece-nos claro que Bergson, diferentemente das ciências, acredita na existência de uma alma autônoma em relação ao corpo, e que o ultrapassa, transcendendo-o não somente no espaço, mas também no tempo. E isto não é uma afirmação ao acaso ou puramente religiosa ou ainda desprovida de rigor científico; pelo contrário, ele chega a esta conclusão em oposição ao “aprisionamento no presente” e na circunscrição do espaço a que está submetida a matéria, podendo, conseqüentemente, ser previsto, limitado e dominado. Mas, contrariamente, o que experienciamos nas profundezas do nosso eu é “indubitavelmente que nos sentimos livres, que tal é a nossa impressão [...] àqueles que sustentam que este sentimento é ilusório, incumbe, pois, a obrigação da prova” (BERGSON, 1979e. p.86).

O que é o homem? Bergson, diferentemente de uma visão materialista, entendia que o homem possui, além de um corpo, uma dimensão espiritual. Para ele, a vida não se resume “ao vai-e-vem das moléculas cerebrais”. Essa forma “bergsoniana” de conceber o homem ou qualquer outra resposta dessa pergunta ontológica refletirá, indiscutivelmente, nas decisões éticas[iii].


[i] Considerando que a alma bergsoniana é a própria consciência, evidentemente, este pensamento não tem sustentação nas ciências positivas. Os avanços científicos demonstram uma crescente tendência de vinculação da consciência ao cérebro. Negar essa verdade científica, em última análise, é negar a própria razão, segundo  DELNERO, Henrique Schutzer. O sítio da mente: pensamento e vontade no cérebro humano. São Paulo: Collegium Cognitio, 1997. p. 18: “Em não se reconhecendo gerada no sítio cerebral, a mente nega a ciência; nega o desvio e seu tratamento; nega a ética nas relações entre seres biológicos e, finalmente, nega a razão. Resgatar uma noção científica da mente, definindo-lhe o local, a função, o desvio e a reunião em grupo pode nos guiar na síntese de uma nova teoria da vida individual e na visão mais clara de certos impasses coletivos”. A ciência não só vincula a consciência ao cérebro, mas identifica áreas específicas para funções específicas, como afirma  MACHADO. Ângelo. Neuroanatomia funcional. São Paulo: Atheneu, 2004. p. 275: “Durante muito tempo acreditou-se que os fenômenos emocionais estariam na dependência de todo o cérebro. Coube a Hess, prêmio Nobel de medicina, demonstrar que esses fenômenos estão relacionados com áreas específicas do cérebro”. Ainda sobre essas áreas específicas do cérebro, afirma BEAUPORT, Elained. A inteligência emocional: as três faces da mente. Trad. de Marly Winckler. Brasília: 1997. p. 21:  “o cérebro é composto de três estruturas diferentes, que desempenham três funções distintas: o sistema neocortical do pensamento e da imaginação; o sistema límbico, localizado abaixo do neocórtex, que nos permite desejar e sentir e, abaixo desses dois, uma estrutura tríplice complexa, relacionada com o comportamento”. Com relação à memória, vinculada, por Bergson, especificamente à alma, à consciência, a ciência vincula, de forma clara, ao cérebro, conforme DELNERO, 1997, p. 207: “Outros elementos que devem estar relacionados à memória no cérebro humano são os moduladores de ação sináptica (hormônios, neuromoduladores). Da mesma forma que algumas drogas apagam ou prejudicam a memória (como o álcool), também algumas “substâncias” internas podem amplificá-la e gerar eventos que colaboram nas alterações de estrutura que subjazem a ela”.  Deve-se salientar também, que a ciência pós-moderna caminha, muitas vezes, em direção contrária ao paradigma científico tradicional, como afirma MORAES, Maria Cândida. Pensamento eco-sistêmico: educação, aprendizagem e cidadania no século XXI. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 309: “De uma sociedade mecanicista, compartimentada e reducionista, na qual prevalecia a objetividade, estamos caminhando em direção ao reconhecimento da multidimensionalide do ser humano e da complexidade que envolve a realidade individual coletiva e ecológica. A ciência pós-moderna está ressuscitando o ser sensível, enterrado pela ciência tradicional, e reconhecendo  multidimensionalidade e complexidade dos processos da vida. É o que a nova biologia e a física quântica nos sinalizam. O avanço da ciência não apenas está desenterrando as dimensões subjetivas do ser humano, ignoradas e negadas pelo paradigma tradicional, mas também ressuscitando a natureza, o cosmo e o sagrado, e reconhecendo emoções e os sentimentos como co-construtores da racionalidade humana. Esta nova consciência que emerge vem promovendo uma nova maneira de perceber a realidade e a própria dinâmica da vida”. Nesse mesmo sentido, comenta TEIXEIRA, João de Fernandes. Filosofia e ciência cognitiva. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 105-107 e 118: “A filosofia da mente foi fortemente abalada pelo advento da ciência cognitiva, que estabeleceu a possibilidade de fundarmos uma ciência dos fenômenos mentais, deixando para trás meras especulações. No século XX tornamo-nos quase todos materialistas, enfrentando agora a difícil  tarefa de relacionar as propriedades da mente com as do cérebro ou com as de outros dispositivos materiais [...]. O neurocientista parece ter se tornado um partidário do chamado materialismo eliminativo [...] não precisaríamos mais falar de intenções, crenças ou desejos, mas apenas de partes do nosso cérebro [...]. Devemos abandonar o projeto de construir uma ciência do cérebro? Com certeza não [...] o que deve ser abandonado, contudo, é a ingenuidade filosófica dos neurocientístas. A ciência do cérebro deve ser uma ciência de como nós representamos nosso cérebro. Não se trata de uma circularidade fútil, mas a recognição de que questões epistemológicas não podem ser ignoradas por aqueles que praticam a neurociência seriamente [...] Bergson é radical: o cérebro consegue mimetizar o processo da consciência de forma limitada e a prova disso é a insuficiência da linguagem ao expressar a intuição, sendo sempre incompleta e frustrante”.
[ii] Sobre sua origem judaica, em BERGSON, 1979i., p. 6, está registrado: “Na fase final de sua vida e de sua obra, Bergson manifestou crescente aproximação da doutrina cristã. Sua origem judaica, entretanto, parece tê-lo impedido de converter-se publicamente ao catolicismo, não desejando abandonar seu povo num momento em que este vivia entre ameaças e perseguições”.
[iii] Em 31/03/2005 o mundo noticiou a Eutanásia da norte-americana Terri  Schiavo, que teve os aparelhos e tubos de alimentação que a mantinham “viva”, subitamente, retirados em 19/03/2005. Por seu cérebro não mais responder a certos estímulos, foi considerada em estado vegetativo, mesmo não sendo possível saber exatamente como ela percepcionava certas sensações. Esta importante decisão, no campo da bioética, resultou em intenso debate sobre a questão outrora abordada por Bergson: É a consciência apenas um produto do cérebro ou pode existir independentemente deste? Mesmo com o avançado estado atual da ciência, decisões como estas, tendem a causar muita polêmica, havendo discordância, inclusive, entre os próprios especialistas.  Para saber mais, acessar o seguinte endereço eletrônico: http://forum.cifraclub.terra.com.br/forum/11/83964. 

terça-feira, 17 de abril de 2012

A CONTRIBUIÇÃO DA FILOSOFIA BERGSONIANA PARA A QUESTÃO BIOÉTICA DO ABORTO EM FETOS ANENCÉFALOS E DA EUTANÁSIA - Parte II



A continuidade da duração da consciência em Bergson: Corpo e Alma - uma consciência para além do cérebro

Estamos sujeitos às mesmas leis que operam sob todas as outras matérias. Temos um corpo, circunscrito no espaço, de forma que, pelo menos na visão do senso comum e, se considerarmos as questões pertinentes à imobilidade, se o impulsionarmos para frente, ele avança; se, pelo contrário, nós o puxarmos, ele recua e, se o largarmos, ele cai. Nosso corpo age deliberadamente por movimentos provocados por causas exteriores. Como afirma Bergson: “a matéria é inércia, geometria, necessidade” (BERGSON, 1979d, p.75).

Nossa identificação com o material é tão forte, e não poderia deixar de ser, que, como bem nos afirma Bergson, “Costuma-se dizer às vezes: Em nós, a consciência está ligada a um cérebro, por isso, é preciso atribuir a consciência aos seres vivos que possuem um cérebro, e recusá-la aos outros” (BERGSON, 1979d, p.72).

Nesse sentido, acredita-se que, desintegrando-se o cérebro, também se acaba a consciência e, por estar tão ligada a ele, acabam por confundir-se.

Para a ciência, essa consciência está tão intrinsecamente ligada ao corpo, que este a acompanha desde o seu nascimento até a sua morte; e, ainda que, por suposição, existisse uma consciência distinta do corpo, isto é, uma consciência não provocada pelo movimento das moléculas cerebrais, ainda assim, tudo se passaria como se ao corpo estivesse ligada, de forma inseparável e, tudo que aconteça a ela – consciência – estará sempre relacionado, diretamente, a algo que tenha iniciado, provocado ou sofrido pelo corpo. Se respiramos cloro, éter ou gás carbônico, por exemplo, seguindo a linha de raciocínio da visão científica, nossa consciência se esvai; da mesma forma, quando ingerimos bebidas alcoólicas, como resultado teremos uma consciência exaltada; se somos acometidos por uma doença infecciosa, que atinja, de alguma forma, o cérebro, deixando seqüelas, ficamos alienados, isto é,  sem consciência. Nesses casos, quando há óbitos, a ciência sempre relaciona a causa da “perda da consciência”, a lesões no cérebro e, quando essas lesões não podem ser localizadas, a patologia é atribuída a alterações químicas nos tecidos cerebrais.

Além desses exemplos que acabamos de citar, a ciência avança a passos largos para o chamado mapeamento do cérebro. Acredita-se que, com esse mapeamento fisiológico do cérebro e, conseqüentemente, com a descoberta da função que possui cada zona do cérebro em específico, ter-se-á desvendado o mistério da consciência, trazendo com isso o tão sonhado domínio completo e a previsão perfeita de todos os atos humanos, ou, pelo menos, de grande parte. Seria uma espécie de fim daquilo que é tão contrário ao espírito científico: a imprevisão e a desordem.

Consegue-se localizar e atribuir a certa zona cerebral algumas funções da consciência ou do espírito, como, por exemplo, a faculdade de executar movimentos voluntários. A ciência já consegue identificar que lesões, em determinadas partes ou zonas cerebrais, levam à paralisia dos braços e pernas; em outras, a linguagem é totalmente afetada. Até mesmo funções que são naturalmente atribuídas à consciência, ao espírito, como, por exemplo, a memória, pode ser localizada em alguma circunscrição das zonas cerebrais, e sofrerão danos se essas zonas forem atingidas e lesionadas.

Bergson, muito embora não tenha sido testemunha ocular dos últimos avanços nesta área, pensava diferente: “não se segue daí que um cérebro seja indispensável à consciência” (BERGSON, 1979d, p.72). Para ele, a consciência existe independentemente das funções cerebrais; isso equivale a dizer que ela não está presa ao cérebro, e nem mesmo existe por sua causa.

Bergson acreditava que atribuir consciência apenas aos seres vivos que possuem cérebro, utilizando-se para isso uma argumentação baseada em analogias exteriores para explicar coisas interiores, por meio de probabilidades, era uma argumentação extremamente viciada. Diz ele:

Para saber com plena certeza se um ser é consciente, seria preciso penetrar nele, coincidir com ele, ser ele. Eu desafio a provar, por experiência ou por raciocínio, que eu, que lhes falo neste momento, sou um ser consciente. Eu poderia ser um autômato engenhosamente constituído pela natureza, indo, vindo, falando; as próprias palavras pelas quais me declaro consciente poderiam ser pronunciadas inconscientemente. Todavia, se a coisa não é totalmente impossível, conceder-me-ão que ela não é de forma alguma provável. Entre vocês e mim há uma semelhança exterior evidente; e desta semelhança exterior concluirão, por analogia, uma semelhança interna. O raciocínio por analogia não dá jamais algo além da probabilidade (BERGSON, 1979d, p.72). 

Para argumentar ainda contra essa linha “viciada” de raciocínio, que apregoa uma consciência ligada, necessariamente, a um cérebro, e utilizando-se dela para, por fim, negá-la, Bergson argumenta que, “raciocinando da mesma maneira, diríamos também: A digestão está ligada em nós a um estômago; por isso os seres vivos que possuem estômago digerem, os outros não digerem” (BERGSON, 1979d, p.72).

Afirmar assim, acreditar assim, de forma positiva, seria, parafraseando suas palavras, “um grave engano”, pois, como ele mesmo afirma, “não é necessário estômago, nem mesmo órgãos para digerir: uma ameba digere, embora seja uma massa protoplasmática apenas diferenciada” (BERGSON, 1979d, p.72).

Em sua análise sobre a suposta necessidade da existência de um cérebro como condição sine qua non para a existência de uma consciência, Bergson chega à conclusão de que isto é simplesmente um problema fisiológico, deixando clara sua intenção de desconstruir essa idéia, não ao acaso, e de forma cética, mas, como veremos mais adiante, essa desconstrução inicial servirá de base para uma surpreendente abertura para a possibilidade do “além”, da “eternidade”.

Na tentativa de banir, definitivamente, o binômio cérebro x consciência, Bergson desce à cadeia de evolução na série animal e demonstra existirem seres vivos que, mesmo não possuindo cérebro, agem como se de fato possuíssem uma consciência.

Em certo sentido, para ele, “a rigor, tudo o que é vivo poderia ser consciente: em princípio, a consciência é co-extensiva à vida” (BERGSON, 1979d, p.72).  Evidentemente, Bergson também admite que, quanto mais se baixa na cadeia evolutiva da série animal, mais existe uma tendência de essa consciência vir a “adormecer”, isto é, tornar-se menos ativa, nunca de ser reduzida a nada. Contudo, o fato de ter o sistema nervoso humano um grau elevado de complexidade e distinção, dando-nos, assim, a impressão de ter a consciência vida tão somente no vai-e-vem das moléculas cerebrais, não nos autoriza, de forma alguma, uma conclusão de ser a existência de um cérebro única condição para a existência de uma consciência:

Lembremos da ameba, de que falávamos há pouco. Na presença de uma substância que lhe pode servir de alimento, ela lança para fora filamentos capazes de apreender e agarrar corpos estranhos. Estes pseudópodes são verdadeiros órgãos e, conseqüentemente, mecanismos; mas são órgãos temporais, criados pelas circunstâncias e que já manifestou, parece, um rudimento de escolha. Em suma, de alto a baixo na cadeia da vida animal vemos exercer, embora sob a forma cada vez mais vaga na medida em que consideram os graus mais baixos, a faculdade de escolher, isto é, de responder a uma excitação determinada por movimentos mais ou menos imprevistos. A consciência retém o passado e antecipa o futuro, é precisamente, sem dúvida, porque ela é chamada a efetuar uma escolha: para escolher, é preciso pensar no que se poderá fazer e lembrar as conseqüências, vantajosas ou prejudiciais, que já foi feito; é preciso prever e recordar (BERGSON, 1979d, p.73).

Dessa forma, Bergson se diz satisfeito e considera plausível sua conclusão e resposta à questão inicialmente levantada: todos os seres vivos são seres conscientes? “A consciência, originalmente é imanente a tudo que vive” (BERGSON, 1979d, p.74).

Essa linha de pensamento e busca constante para provar que existe consciência além do cérebro aparece também, de forma bastante significativa e volumosa, em sua obra “Evolução Criadora”. 

segunda-feira, 16 de abril de 2012

A CONTRIBUIÇÃO DA FILOSOFIA BERGSONIANA PARA A QUESTÃO BIOÉTICA DO ABORTO EM FETOS ANENCÉFALOS E DA EUTANÁSIA - Parte I



Recentemente (2008) tivemos no Brasil uma ampla discussão acerca da descriminalização total do aborto, seguindo uma tendência da América Latina. Mal saímos desses intensos debates, onde saiu vitorioso o grupo da não descriminalização, e outro assunto, de mesmo caráter, de pronto surgiu; na verdade uma retomada de um antigo problema[i]: a questão do aborto de fetos anencéfalos[ii]. Como em todos os assuntos de cunho eminentemente ético, este tem provocado uma intensa discussão, desta feita no Supremo Tribunal Federal, a mais alta corte de justiça do Brasil.

Poucos casos, porém, chamaram, à época, tanto a atenção quanto o da jovem Eloá[iii], assassinada com um tiro na cabeça, proferido por seu antigo namorado. O caso teve ampla cobertura da impressa brasileira, o que acabou dando subsídios para o levantamento de uma série de questionamentos, tais como: o que leva um jovem estabilizado a cometer tal crime? Com quantos anos os pais devem permitir que seus filhos namorem? A polícia brasileira está preparada para enfrentar situações como essas?

Todos esses são questionamentos justos, porém, queremos chamar a atenção não para o episódio, propriamente dito, mas para o momento da decisão acerca do “final da vida” de Eloá. Quando Eloá morreu? A partir de que nível de consciência o indivíduo pode ser considerado morto? O que é a vida? O que é Ser-Humano? A ciência pode, de fato, estabelecer quando a vida chega ao fim? Ou antes, no caso da anencefalia, quando inicia? Estar “vivo” depende tão somente do pleno funcionamento das atividades cerebrais? É lícito abreviar a “vida” (desligar máquinas que mantém os sinais vitais ou mesmo extirpar fetos com anencefalia) de um ser, ainda que com um nobre objetivo de doação de órgãos ou de diminuição do sofrimento da mãe? Esses são questionamentos que, em si mesmos, possuem um viés filosófico extremamente forte.

Os médicos, antes de constatada a chamada “morte cerebral”, precisam seguir um rigoroso protocolo[iv] que tem por objetivo medir o nível da atividade no cérebro. Quando esse nível chega a um patamar muito baixo, o médico pode então atestar a morte do paciente, liberando-o, mediante autorização da família, para a doação dos órgãos. Foi precisamente o que ocorreu com Eloá. A ciência definiu o momento de sua morte, mesmo ainda havendo funções vitais e consciência, ainda que em um nível considerado baixo.

Esse protocolo, muito embora possua aceitação mundial, acaba por definir o conceito de Ser Humano; de Vida e de Morte. Para a ciência (ainda abordaremos esse assunto mais adiante), o homem está resumido ao cérebro. O que a filosofia tem a nos dizer sobre isso? É certo ou errado desligar as máquinas que mantém os sinais vitais? A eutanásia é um procedimento ético? O que a ética, enquanto objeto de pesquisa da filosofia, tem a nos dizer sobre o aborto de fetos com anencefalia?

A questão do direito à vida é um dos elementos basilares do homem – e, assim sendo, é universal, o que pressupõe que em qualquer lugar do planeta esse direito é o mesmo e está acima de qualquer outro. Nesse sentido a Ética filosófica pergunta: pode a ciência definir – sozinha - o fim da vida? Acaso limitar o ser humano a uma série de atividades cerebrais não significa simplificar algo que é extremamente mais complexo? O homem é de fato - como quer a ciência - um ser apenas constituído de elementos materiais ou ao contrário também de elementos espirituais?

Estaria correto o Ministro do Supremo Tribunal Federal, relator da ação proposta em 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, quanto ao aborto em fetos com anencefalia, Marco Aurélio Mello, quando afirma que “Aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida em potencial. No caso do anencéfalo, não existe vida possível. O feto anencéfalo é biologicamente vivo, por ser formado por células vivas, e juridicamente morto, não gozando de proteção estatal?
http://g1.globo.com/brasil/noticia/2012/04/relator-vota-no-stf-pela-legalidade-do-aborto-de-feto-sem-cerebro.html.

Para responder a essas e outras questões correlatas, estaremos analisando a contribuição da filosofia Bergsoniana[v] à difícil problemática que envolve o binômio cérebro-consciência. Aguardem as próximas postagens.


[i] Desde 2004. Para saber mais sobre o assunto, consultar a Revista Época, edição de 15/03/2004. 
[ii] A anencefalia consiste em malformação rara do tubo neural acontecida entre o 16° e o 26° dia de gestação caracterizada pela ausência total ou parcial do encéfalo e da calota craniana, proveniente de defeito de fechamento do tubo neural durante a formação embrionária. Ao contrário do que o termo possa sugerir, a anencefalia não caracteriza somente casos de ausência total do encéfalo, mas sobretudo casos onde observa-se graus variados de danos encefálicos, conforme http://pt.wikipedia.org/wiki/Anencefalia, acessado em 01/11/2008.
[iii] A estudante Eloá Pimentel foi refém do ex-namorado por 100 horas, em 10/2008. No desfecho do seqüestro, a jovem e a amiga Nayara foram baleadas. Para saber mais sobre o assunto, acessar o seguinte endereço eletrônico: http://g1.globo.com/Noticias/eloa.html.
[iv] Para saber sobre o protocolo de morte cerebral, acessar o site: http://www.ufpe.br/utihc/morte.htm.
[v] Henri-Louis Bergson (Paris, 18 de outubro de 1859 – Paris, 4 de janeiro de 1941) foi um filósofo e diplomata francês. Conhecido principalmente por Matière et mémoire e L'Évolution créatrice, sua obra é de grande atualidade e tem sido estudada em diferentes disciplinas - cinema, literatura, neuropsicologia, conforme: http://pt.wikipedia.org/wiki/Henri_Bergson.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

A TRANSIÇÃO DO TEMPO PARA A ETERNIDADE COMO UM PRESSUPOSTO MÍSTICO EM AGOSTINHO DE HIPONA - Controvérsia com Pelágio - Parte 3 (final)

1.2    A controvérsia com Pelágio

Outra importante controvérsia, de caráter mais teológico, ainda teria despertado Agostinho para a questão da eternidade, desta feita, com Pelágio, monge britânico, eunuco, natural da Irlanda, que se engajou em intenso conflito contra Agostinho, numa questão que envolvia basicamente o problema do livre-arbítrio.

Borges, sobre esse assunto, faz a seguinte afirmação:

A eternidade permaneceu como atributo da ilimitada mente de Deus, e sabe-se muito bem que as gerações de teólogos tem trabalhado essa mente a sua criação e semelhança. Nenhum estímulo tão vivo quanto o debate da predestinação. Quatrocentos anos depois da paixão e morte de Cristo, o monge inglês Pelágio incorreu no escândalo de pensar que os inocentes que morrem sem o batismo alcançam a glória. Agostinho, bispo de Hipona, o refutou com indignação aclamada por seus editores. Observou a heresia dessa doutrina: a negação de que no homem Adão todos nós homens já pecamos e perecemos, o esquecimento horrível de que essa morte se transmite de pai para filho pela geração carnal – adiante que segundo a justiça todos nós merecemos o fogo sem perdão, mas que Deus determina salvar alguns, segundo seu arbítrio[1].

Ainda sobre a importância deste debate que é, em última análise, matéria prima de Agostinho para refletir sobre a eternidae, Sproul faz a seguinte afirmação:

A questão entre Pelágio e Agostinho era clara. Não estava ofuscada por argumentos teológicos intricados, especialmente no começo. Nunca houve, talvez, uma outra crise de igual importância na história da igreja na qual os oponentes tenham expressado os princípios em debate tão clara e abstratamente. Somente a disputa Ariana pode ser comparada a ela[2].

Para Pelágio, diferentemente de Agostinho, o homem continuava habilitado, mesmo depois da queda, a fazer o bem se assim desejasse e que não se fazia necessário uma assistência especial da graça de Deus para que o ser humano o obedecesse. Para Agostinho, entretanto, esta assistência da graça era essencial e indispensável, sendo outorgada por Deus, na eternidade.

Para combater as idéias de Pelágio, consideradas heréticas, Agostinho escreve “A Graça”, uma obra densa e de extrema lucidez, onde retoma a questão do Livre Arbítrio tendo, inclusive, modificado seu entendimento inicial sobre o assunto, além de tratar também sobre a própria doutrina da Graça e sobre Predestinação. Ao abordar esses temas, obviamente Agostinho aborda também a questão da Eternidade.

Procuremos entender a vocação própria dos eleitos, os quais não são eleitos porque creram, mas são eleitos para que cheguem a crer. O próprio Senhor revela a existência desta classe de vocação ao dizer: Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi (Jo 15: 16). Pois, se fossem eleitos porque creram, tê-lo-iam escolhido antes ao crer nele e assim merecerem ser eleitos. Evita, porém, esta interpretação aquele que diz: Não fostes vós que me escolhestes [...]. Esta é a imutável verdade da predestinação da graça. Pois, o que quis dizer o Apóstolo: Nele ele nos escolheu antes da fundação do mundo?(Ef 1:4). Com efeito, se de fato está escrito que Deus soube de antemão os que haveriam de crer, e não que os haveria de fazer que cressem, o Filho fala contra esta presciência ao dizer: Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi. Isto daria a entender que Deus sabia de antemão que eles o escolheriam para merecerem ser escolhidos por ele. Conseqüentemente, foram escolhidos antes da criação do mundo mediante a predestinação na qual Deus sabia de antemão todas as suas futuras obras, mas são retirados do mundo com a vocação com que Deus cumpriu o que predestinou. Pois, o que predestinou, também os chamou com a vocação segundo seu desígnio. Chamou os que predestinou e não a outros; predestinou os que chamou, justificou e glorificou (Rm 8:30) e não a outros com a consecução daquele fim que não tem fim[3].

Este debate tem sido atualizado ao longo da história do cristianismo: No século XVI foi revivido de forma intensa pelos reformadores Lutero e Calvino, além de outros, que subscreviam a posição agostiniana, enquanto  Erasmo de Roterdam, além de outros, à de Pelágio. No século XVII mais uma vez o debate reaparece, quando um dos mais entusiasmados seguidores de Pelágio, o holandês Thiago Armínius retoma a questão. Para combatê-lo, os calvinistas, reunidos em concílio, formularam um documento que ficou conhecido como “Os Cânones de Dort”, reafirmando, como crença oficial da Igreja Reformada, a posição agostiniana. No século XIX o debate toma força novamente, desta vez com os puritanos ingleses, que formularam a “Confissão de Fé de Westminster”, para ratificar a posição Calvino e, conseqüentemente, de Agostinho. Na contemporaneidade o debate ainda continua de forma intensa, atualizado, principalmente, por calvinistas e arminianos.


O sétimo dia, porém, não tem tarde nem repouso, porque o santificaste para permanecer eternamente. Aquele descanso, com que repousaste no sétimo dia depois de tantas obras muito boas – que realizaste sem cansaço – é um anúncio que nos vem pela palavra da tua escritura: também nós, descansaremos em ti, no sábado da vida eterna, depois dos nossos trabalhos, que são bons porque os concedestes a nós[4].


Como vimos, tanto a controvérsia com os maniqueus como a controvérsia com Pelágio, foram de grande importância na construção teoria do tempo de Agostinho, e, de forma muito particular, para a questão da eternidade. Esses debates provocaram e estimularam sua mente, fazendo-o refletir seriamente sobre o problema.

Contudo, uma das mais marcantes experiências místicas de esperança da continuação da vida da consciência após a morte física que Agostinho desfrutou foi, certamente, na última conversa com sua mãe – Mônica –, ao aproximar-se o dia da sua morte. Relata Agostinho que, depois de uma cansativa viagem, conversava com sua mãe, olhando para o futuro, sobre “qual seria a vida eterna dos santos”. Numa experiência mística, chegando ao “íntimo de suas almas”, por “intuição”, por um momento pensaram ter alcançado fagulhas da vida por vir; e, como afirma, naquele momento de contemplação, “o mundo, com todos os seus prazeres, perdia para nós todo valor e minha mãe me disse: “Meu filho, nada mais me atrai nesta vida [...] Deus me satisfez amplamente, porque te vejo desprezar a felicidade terrena para servi-lo”[5].

Esse diálogo é de fundamental importância para termos noção da esperança que Agostinho alimentava de uma vida além de sua vida física; e não somente isso, mas também de como a considerava, analogamente à sua mãe, mais importante e mais pujante que a vida terrena. Agostinho tinha plena convicção de que sua mãe havia sido predestinada[6], não por merecimento, e que essa convicção, baseada em seus frutos, dava-lhe condições plenas de afirmar que “ela não responderá que nada deve, por medo de ser convencida do contrário [...], mas, ela responderá que sua dívida lhe foi perdoada por aquele a quem ninguém pode restituir o que ele pagou por nós sem ser devedor”[7].

Tomado de uma perplexidade gratificante, pelo testemunho corajoso de sua mãe ao ser perguntada se não tinha medo de deixar seu corpo longe de sua terra natal, ao que respondeu, segundo seu próprio relato, que “para Deus nada é longe, nem devo temer que, no fim dos séculos, Ele não reconheça o lugar onde me ressuscitará”[8]. Tendo, finalmente, falecido sua mãe, refletiu e chegou à conclusão de que:

De fato não parecia justo celebrar o funeral com lamentos e choros, pois essas demonstrações servem usualmente para deplorar a morte como infelicidade ou como aniquilamento total, ao passo que essa morte não era uma desgraça, nem para sempre[9].

A clareza e a convicção de uma “vida eterna” após a vida física inundara a mente de Agostinho, de forma definitiva, fazendo-o produzir um belíssimo salmo com o qual finalizamos sua compreensão de eternidade:

Que se lembrem com piedosa emoção dos que foram meus pais nesta vida transitória [...] Que se lembrem dos meus concidadãos na eterna Jerusalém, pela qual suspira teu povo peregrino desde a partida da pátria até o regresso[10].


[1] BORGES. Jorge Luis. História da eternidade. 4. ed. Trad. de Carmem C.Lima. São Paulo: Globo, 1991.p.2
[2] SPROUL, R.C. Sola gratia: a controvérsia sobre o livre arbítrio na história. São Paulo: Cultura Cristã, 2001. p. 31
[3] AGOSTINHO. A graça II . São Paulo: Editora Paulus, 1999, p.194,195.
[4]Conf., XIII, 36.51.
[5]Conf., X.25.
[6] Esta é uma doutrina característica de Agostinho. Ele a aborda densamente nos dois volumes de seu tratado sobre a graça. Em síntese, esta doutrina é uma conseqüência lógica de sua antropologia: com o pecado, o homem tornou-se tão corrompido quanto poderia ter sido, isto é, teve sua “essência” totalmente corrompida, não restando, neste homem, bem algum capaz de habilitá-lo a aproximar-se de Deus novamente. A antropologia Agostiniana influenciou profundamente o pensamento protestante reformado, dando origem à doutrina da “depravação total do homem”. Não sendo este homem capaz de, por sua própria vontade, voltar-se para Deus, por estar morto espiritualmente, como conseqüência do pecado, resta-lhe, como única alternativa, contar com a graça de Deus. Antes da fundação do mundo (por isso o termo predestinação), Deus escolheu, graciosamente, alguns para reabilitar (do seu estado de depravação total) e salvar suas almas.
[7] Conf., XIII, 35.
[8] Conf., XIII, 11.28.
[9] Ibid., XIII, 12.30.
[10] Ibid., XIII, 13.37.

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